AS POLÍTICAS DA ÁGUA E DO REGADIO EM PORTUGAL CONTINENTAL
Entrevista com o Professor José Pimentel de Castro Coelho, na sequência da sua comunicação sobre “As políticas da água e do regadio”, na sessão comemorativa dos 30 anos da AGRO.GES, a 4 de Dezembro 2019 no Centro Cultural de Cascais.
Qual a importância e relevância do regadio para e em Portugal?
O primeiro ponto que me parece ser de destacar é o de estabelecer a necessidade e imprescindibilidade do regadio em Portugal. Isso deve-se às particularidades do nosso clima mediterrânico, que se traduz, entre outras coisas, pela existência de um prolongado período de défice hídrico acentuado, precisamente na época do ano mais favorável à produção primária. Este défice hídrico sazonal pode ser retratado através do cálculo do Balanço hídrico de água no solo, que nos indica a existência de um longo período, de abril/maio a setembro/outubro, em que a evapotranspiração real (ETr) é significativamente inferior à evapotranspiração potencial (ETp).
Mas existem, ainda, duas outras facetas associadas à variabilidade do défice hídrico, uma de natureza inter-anual e, outra, de natureza territorial ou espacial. Quanto à variação inter-anual da precipitação num determinado local, podemos constatar a existência de variações relativamente à média da ordem dos +/-50% a 60%, consoante estejamos a falar dos anos mais húmidos ou dos anos mais secos. Relativamente à variação espacial da precipitação no território de Portugal Continental, podemos constatar a existência de défices hídricos anuais em percentagem (ETp-ETr/ETp) compreendidos entre os 10%, no noroeste, e os 30%, no centro e sul.
Para completar o retrato, acrescentamos que, em termos futuros, e em função das predições dos modelos que estudam os fenómenos associados às alterações climáticas, espera-se um agravamento continuado desta situação, que, genericamente, pode ser traduzido pelas seguintes tendências:
- Redução da precipitação total, quer no período de Inverno quer de Primavera;
- Redução das afluências por bacia hidrográfica estimadas em 23% a 8%, num horizonte de 25/30 anos;
- Agravamento do Índice de Aridez (razão entre precipitação e evapotranspiração potencial) traduzido pela expansão da classe “semiárido” a todo o centro e sul do território;
- Evolução previsível de acréscimo das necessidades de água em geral (estimadas à escala de bacia hidrográfica) e para a rega em particular.
- As disponibilidades potencias de água são relativamente elevadas, sobretudo a norte, mas assimetricamente distribuídas: vivemos, pois, num paradoxo de escassez (a nível local ou regional) na abundância (a nível nacional);
- O índice de escassez, que mede a razão entre a oferta e a procura potenciais de água no contexto dum determinado território ou duma dada bacia, era de 14% para Portugal em março de 2019, ou seja, que o país se encontrava numa situação de escassez reduzida. No entanto, a mesma análise efetuada por bacia hidrográfica, revelava importantes assimetrias regionais, decorrentes sobretudo da distribuição dos recursos hídricos (a bacia do Sado, era, então, a que vivia uma situação de escassez mais acentuada);
- De forma contabilística e estatisticamente fundamentada, o INAG não tem dúvidas em afirmar que a atual capacidade de armazenamento do país não é suficiente para garantir a manutenção de abastecimento futuro a todas as utilizações de água.
- A agricultura é o principal utilizador de água em Portugal, representando, hoje, cerca de 60% dos consumos de todos os setores (agricultura, indústria, urbano, energia);
- O regadio representa cerca de 12% da SAU, 52% das explorações agrícolas portuguesas praticam a rega e são responsáveis por mais de 60% da produção agrícola nacional;
- Ao longo das últimas décadas temos assistido a uma evolução tecnológica notável que se traduziu em aumentos da eficiência (+56%) e da produtividade da água (+70%);
- O efeito multiplicador do regadio pode ser aferido pelo facto de, em média, 1 ha de regadio produzir 5x mais do que 1 ha de sequeiro e 11x mais do que 1 ha da restante SAU;
- O acréscimo da pressão sobre os recursos, decorrente da expansão e intensificação do regadio em Portugal previsível até 2030, é da ordem de + 45% para a energia e +30% para a água.
- A segurança alimentar;
- A produção a preços competitivos;
- A fixação de população e renovação geracional do setor;
- O desenvolvimento rural sustentável e a proteção do ambiente;
- A mitigação das alterações climáticas.
Quais são os principais desafios, objetivos e princípios básicos de uma política da água e do regadio?
Os 4 grandes desafios estratégicos identificados pelo atual Governo são as Alterações Climáticas, as Desigualdades, a Demografia e a Transição Digital. A meu ver, dificilmente poderemos imaginar outras políticas que sejam tão adequadas (no sentido de serem tão eficazes, eficientes, compreensivas e duradouras) como as políticas da água e do regadio para responder simultaneamente àqueles 4 desafios.
Na minha opinião, os três grandes objetivos que devemos priorizar numa política da água e do regadio são:
1. Manutenção, conservação e expansão das infraestruturas e tecnologias de captação, armazenamento e distribuição de água para rega, no âmbito do Desenvolvimento de um Grande Sistema Hidráulico Nacional (GSHN) o que implica a articulação, porosidade, transvases e a revisão dos acordos com a Espanha. Um tal sistema contribuirá, decisivamente, para o fortalecimento da garantia de água e aumento da resiliência a fenómenos extremos climáticos (cheias e secas);
2. Continuar a trajetória de melhoria da eficiência de uso da água, e da energia e do azoto que lhe estão associadas, bem como dos respetivos sistemas de monitorização e gestão;
3. Estudar e desenvolver uma política de preços e tarifários da água competitivos e equilibrados, tanto do ponto de vista do utilizador como do fornecedor de água.
Num sentido mais amplo, a persecução do primeiro destes objetivos implica um exercício de planeamento global do território, enquadrando um máximo de informação disponível, para a definição de uma série de etapas que devem desenvolver-se de forma processual e iterativa. Dada a natureza transversal relativamente às suas distintas utilizações setoriais, que resulta da circunstância de a água ser um recurso indispensável à atividade da maioria dos sectores que condicionam o desenvolvimento económico, social e ambiental, o planeamento dos recursos hídricos pressupõe o exercício de uma função predominantemente prospetiva, holística e coordenadora, que deve assentar em critérios de pré-qualificação (económica, social e ambiental) e de classificação do território, nomeadamente quanto aos valores (sobretudo se únicos) a preservar e proteger.
É claro que a prossecução destes objetivos terá de contar com o necessário apoio de Bruxelas (FEADER, FEDER, Fundo de Coesão, ….). Para isso, Portugal e os países do sul terão de ser capazes de afirmar e explicar as suas particularidades e especificidades em matéria de regadio aos restantes EM, e de lutar para que os critérios ambientais não prevaleçam sobre os critérios socioeconómicos, com um impacto negativo no crescimento do PIB e na criação de emprego.
Por último, entendo que é útil explicitar uma série de princípios básicos a respeitar/atender no âmbito do desenho e construção de uma política de regadio:
- Utilizador/pagador
- Poluidor/pagador
- Conservador/recebedor
- Cumprimento do caudal ecológico
- Balanço hídrico à escala de bacia hidrográfica e hierarquia de necessidades de consumo (humano, agricultura, outras atividades)
- Equidade versus diferenciação (impacta na competitividade e na eficiência)
- Subsidiariedade (a propósito da governança dos sistemas)
- Fornecedor competitivo e fiável (refletido no preço e na garantia do fornecimento)
Quais são as principais prioridades e grandes eixos de uma política global de gestão do regadio?
Relativamente às prioridades, importa destacar as seguintes:
- Zelar pela manutenção das infraestruturas já existentes e promover a adesão nos regadios em que a sua taxa é baixa;
- Desenvolver/Instituir medidas agroambientais que promovam o uso eficiente da água e da energia, premiando por escalão quem é mais eficiente (e não, necessariamente, quem poupa mais...), promovendo o uso de tecnologias (de monitorização, prescrição, aplicação, etc.), de uso eficiente da água;
- Privilegiar o aumento da capacidade de armazenamento das águas superficiais, através da construção de novos reservatórios/barragens e promover a sua gestão articulada à escala nacional;
- Utilizar critérios de seleção para a localização dos novos investimentos em reservatórios e regadios, tendo em consideração o papel essencial do regadio na coesão territorial (económica, social e ambiental);
- Estabelecer regras de gestão da água armazenada nestas infraestruturas que reflitam a multiplicidade de fins, criando medidas de prevenção de crises (planos de contingência) e de mitigação das alterações climáticas.
- Desenvolvimento do Grande Sistema Hidráulico Nacional (GSHN)
- Competitividade
- Sustentabilidade
- Eficiência e Impactes ambientais
- Governança
- Financiamento
É desejável evoluir para uma harmonização tarifária no todo nacional, através da aplicação de instrumentos do tipo Fundo de Equilíbrio Tarifário associado a mecanismos de perequação. São igualmente necessárias correções tarifárias progressivas (respeitantes quer à água quer à energia), associadas a ações de reestruturação na geometria dos sistemas existentes e integração horizontais e verticais, com o objetivo de conferir perspetivas de viabilidade a entidades gestoras em risco.
Em suma, quais são as prioridades mais prementes?
Dentro do orçamento disponível devemos dar prioridade a todos os investimentos que, sendo viáveis, concorram para:
- Reforço e constituição de um verdadeiro Sistema Hidráulico Nacional, como consequência de uma visão integrada da gestão e do planeamento dos recursos hídricos à escala de todo o território nacional.
- O reforço da coesão territorial. O regadio é um instrumento para melhorar a quantidade, a qualidade e a rentabilidade das produções. Multiplica por 6 os rendimentos e por a 4 rentabilidade. Assim sendo a transformação em regadio e a modernização das zonas regáveis permite fixar/estabelecer a povoação e gerar rendimento e emprego.
- A melhoria da eficiência de uso da água (com evidentes reflexos diretos na energia e nos fertilizantes) e a contenção/redução/melhoria dos impactes ambientais. A inovação tecnológica e metodológica (estimativa de externalidades positivas) são imprescindíveis para a sustentabilidade do sector. A este propósito parecem-nos existir duas abordagens possíveis:
- Partir de um Input/Recurso fixo -> e buscar o máximo output -> estimando a dotação de referência por cultura -> e aplicando um agravamento do tarifário pelo excedente (esta abordagem parece-nos ser a mais adequada para tratar das culturas anuais);
- Partir de um Output/Produto fixo -> e buscar o mínimo input -> estimando a dotação mínima de sobrevivência -> e cobrando um prémio de garantia (esta abordagem parece-nos ser a mais adequada para tratar das culturas permanentes).